Por Modesto Neto*
É no mínimo curiosa a fascinação que a sociedade contemporânea no interior do Rio Grande do Norte tem por episódios trágicos na trajetória de terceiros. Este fenômeno que não é um manifesto social particular potiguar também pode ser notado nas grandes metrópoles que alimentam a alta audiência dos programas policiais na televisão. Já no interior os blogs e os programas radiofônicos que tratam da questão policial são em síntese os donos de muitos holofotes sociais, atraindo parcela considerável da atenção popular. Neste sentido, grosso modo, consideramos esse fenômeno como uma expressão particular da comunicação globalizada: não só programas policiais, mas a superexposição das tragédias em canais de comunicação e o consumo antropofágico das desgraças alheias, coisa bem particular do século XX e XXI no Brasil. O programa Cidade Alerta da Record, hoje dirigido pelo Marcelo Resende, data seu nascimento de 1995, já o Policia 24 horas é coisa recente. O certo é o seguinte, num formato antiquado ou com uma nova roupagem a atenção para as tragédias sociais que ilustram os programas policiais tem a atenção do público. O espetáculo-tragédia é moda.
Angicos que recebeu a implantação UFERSA em 2009 ainda engatinha para assegurar as possibilidades de ingresso e permanência das populações locais ao ensino superior, contudo sente-se de forma acentuada os efeitos do processo da globalização capitalista na forma como o capital especulativo imobiliário amparado na lei de procura e demanda trata ao aumentar os valores cobrados em alugueis tornando ainda mais difícil a vivência de estudantes de vários estados do país na cidade. Esta questão dos alugueis que sem sombra de dúvidas é uma condicionante socioeconômica que corrobora para uma evasão de quase 50% é uma expressão das transformações que a globalização capitalista opera na cidade, tal como a violência.
Antes da chegada da universidade o número de incidentes policiais vem crescendo historicamente e basta consultar o livro “Angicos, ontem e hoje” da memorialista Zélia Alves e averiguar o número de atendimentos na delegacia de policia nos meados do século passado para perceber que o aumento demográfico está intimamente ligado ao número de incidentes, noutras palavras quanto mais pessoas, mais casos de violência. Após a chegada da UFERSA o número de furtos e pequenos delitos aumentaram consideravelmente e não são poucos os blogs e programas radiofônicos que estupidamente responsabilizam os universitários e a universidade pela violência na cidade. O discurso deste setor midiático do espetáculo-tragédia procura não apenas responsabilizar os estudantes universitários, mas criminalizá-los na medida em que atrela suas experiências sociais a desordem. Nesta linha é possível ler nos blogs da cidade que a policia está moralizando e colocando “ordem” no município ao prender pequenos traficantes e expondo-os como troféus da “competência policial” e não como fruto do trabalho que se espera do aparelho de repressão oficial do Estado, ou seja, manutenção da ordem civil.
Uma parte dos ditos comunicadores da cidade sistematicamente têm estigmatizado a policia e os estudantes delineando um lugar social reservado e definido para ambos. O setor policial é colocado no pedestal da ordem, enquanto que para os universitários é reservado o lugar social de delinqüentes em potencial. O que temos de certo neste debate é que a cidade de Angicos nunca esteve preparada para o impacto urbano e social de um aumento populacional tão rápido e simultaneamente para os efeitos da globalização que os centros universitários causam as cidades onde se formam. Agora não nos vale nada chorar a falta de planejamento e lamber as feridas já que a conjuntura é outra e a ação política – dos movimentos sociais e dos poderes públicos – é emergente.
O Legislativo municipal nos últimos três anos colocou – embora de forma vaga – a questão da segurança pública e da criminalidade em debate. Judiciário, Legislativo, Executivo e a própria população civil organizada estabeleceram espaços de diálogo através das últimas audiências publicas realizadas e no meio de tantas falas é difícil encontrar nas propostas para resolver o problema algo de valido. As falas visam o imediato e cometem o ledo engano ao não enxergar a violência como uma questão socialmente construída. Levantou-se a questão do monitoramento por câmaras, aumento de efetivo policial e patrulhamento ostensivo como meios para coibir a violência. Na Assembléia Legislativa o deputado estadual Walter Alves protocolou requerimento nesta terça-feira solicitando maior aumento de efetivo e melhoria nos equipamentos dos agentes de segurança para Angicos. No ofício uma das alegações do deputado é que a cidade possui vasta área periférica endossando o pensamento do senso comum que assimila periferia a criminalidade. Se é na periferia onde ocorre o maior número de crimes vale ressaltar que também é lá que os serviços públicos básicos menos chegam.
Em recente pesquisa encomendada pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ) foi noticiado que aproximadamente 80% dos jovens infratores (infratores com faixa etária entre 14 e 18 anos incompletos) não terminaram o ensino fundamental. Além de estatísticas este apontamento é sintomático em demonstrar que o debate sobre a educação deve preceder a questão da segurança. Existem dois caminhos para resolver a questão da criminalidade, um deles resolverá os problemas de imediato e em curto prazo a aparente segurança se dissipará. Esta é a opção pelo corpo repressivo para conter uma legião de criminosos exterminando-os ou prendendo-os. Nós divergimos desta proposição e advogamos no sentido contrário, acreditamos que cuidar do problema em suas origens tirando a criança de áreas de risco e ofertando-lhe as condições educacionais e sociais para ser ator de sua história é o caminho mais acertado. Queremos mais escolas, mais universidades, mais postos de trabalho e mais vida digna para termos menos criminosos e conseqüentemente precisar menos da repressão policial. A criminalidade é a filha primeira da desigualdade social e a repressão apenas poda seus galhos, somente educação e vida digna cortam-lhe a raiz.
Antes de estereotipar os estudantes da UFERSA e as populações periféricas em Angicos como potenciais delinqüentes e perpetradores de crimes enxerguemos a violência simbólica e social que a cidade exerce sobre os mesmos. Além da especulação imobiliária como ave da rapina das limitadas economias dos estudantes os serviços básicos como os de saúde são no mínimo precários e nas áreas periféricas quase que inexistentes. Este problema social não é culpa do atual governo ou dos últimos governos, é culpa do modelo político e da classe política dominante que mesmo arcaica colonizou os meios de representação e exerce o exercício do poder sem as condições de apresentar respostas alternativas e viáveis a resolução dos grandes gargalos sociais. Os índices de desemprego são alarmantes e a violência emerge de uma massa populacional desempregada sem serviços públicos de qualidade e sem o vislumbre de oportunidades. Ninguém nasce bandido ou criminoso, mas é moldado pela sociedade a ser.
Essas poucas observações sobre a relação entre a globalização e violência que se opera no interior da cidade universitária chamada Angicos precisa ser objeto do debate dentro da academia. O senso comum de programas policiais é palco para a formação de estereótipos excludentes e estigmatizastes e as respostas da classe política já demonstraram por si só serem insuficientes. É emergente institucionalmente a UFERSA pautar este debate e que nós agora formulemos nossas próprias respostas.
*É historiador, sociólogo em formação e ex-universitário da UFERSA – Angicos.